Eric decidira dar um novo destino para o Castelo de Gorki; embora tivesse este nome, era na verdade uma ampla mansão construída há muito tempo atrás, por um ancestral da condessa Cristina, e sua história era cercada de mistérios e controvérsias. Elas se referiam a uma possível maldição que envolveria todas as construções do Barão de Komedhor, que e ancestral da Condessa Cristina.
Há 200 anos, quando o barão havia começado a construção do castelo, muito se falava: sobre os motivos da sua expulsão da Rússia, seu envolvimento com magia, os vários acidentes na época da construção e os boatos sobre o desaparecimento de trabalhadores que nunca tiveram seus corpos achados também assombravam aquele lugar. Para poder contemplar e afastar seu filho do castelo de Komedhor, ele decidiu construir o castelo de Gorki, menor e um pouco afastado daquele, para que pudesse fazer suas atividades sem ser incomodado. Komedhor foi concluído, mas o ar sombrio continuava, principalmente depois que o barão desposou a bela Vanessa, filha de um rico senhor de terras que morava próximo ao castelo; quando Gorki foi concluído, seu filho foi praticamente isolado e enviado para lá, pois a esposa do Barão detestava seu enteado. Assim, o jovem Roberto amaldiçoou Komedhor, e fazia todo o possível para que jamais alguém fosse feliz naquele lugar. Roberto fora iniciado na baixa magia por seu pai , e até fora apresentado a seu mestre, visto que Roberto era muito talentoso na condução e evocação de forças das sombras.
Todas aquelas lendas e história incomodavam a Condessa Cristina e seu tio Louis, muito embora para Eric não passassem de contos, que ele não acreditava e assim se instalaram em Gorki.
A Condessa Cristina foi a contragosto e Louis somente ficaria alguns dias para contentar sua afilhada Carol Trein. Aquele lugar não era para ele, porém Carol Trein e Fabiana contemplavam a bela paisagem e os pensamentos galopavam em direção ao mágico e desconhecido futuro.
-Então, tio Louis, não deseja mesmo ficar aqui? Confesso que essa sua decisão me desapontou. Esperava que você ficasse conosco pelo menos um mês.
- Não, Eric. Vim apenas para agradá-los, mas agora apelo para que deixem logo este lugar malévolo que me provoca verdadeiro pavor.
Louis La Fonte era um velho almirante de aparência enérgica. Seu belo rosto era emoldurado por uma barba grisalha; seus grandes olhos acinzentados demonstravam certa amargura e indicavam que a vida não o havia poupado da luta, nem das desilusões.
— Mas, padrinho, fique! Eu lhe peço! Veja como este lugar é ótimo! Olhe que belo panorama, que ar puro e revigorante!
Interrompeu a conversa uma jovem que estava sentada próxima.
Afastando o prato com morangos, ela correu para perto dos dois e apontou para a paisagem que se descortinava à frente. No sopé da colina, onde fora construída aquela casa, havia um belo lago com uma ilha de vegetação densa ao centro. Através da folhagem podia-se vislumbrar o telhado pontiagudo de um prédio
E, mais ao longe, um povoado e a cúpula azul de uma igrejinha.
A conversa descrita acontecia num amplo terraço, repleto de flores e plantas, que dava para um jardim que levava ao lago. Junto à mesa, bem posta com talheres de prata, cristais e vaso de flores, estava o anfitrião, sua esposa, a filha Carol Trein, a família Surotsev, seu padrinho Louis e um padre. No jardim, perto da escadaria, brincava Nympha com Erica.
A propriedade Gorky, aonde a família chegara há apenas duas semanas, fazia parte de uma herança recebida pela Condessa Cristina Tuzov. A casa senhorial tinha sido totalmente reformada para receber os Tuzov La Fonte
— Não acha que estou certa, padrinho?
Será que esta bela vista não é motivo suficiente para que permaneça conosco e esqueça essas estranhas superstições?
- Por que um lugar tão lindo haveria de ser malfadado? — perguntou Carol Trein, olhando com malícia para o almirante.
- Carol Trein está certa! Você deveria se colocar acima dessas lendas tolas, Louis — afirmou o anfitrião, apoiando a filha.
— Compreendo sua estranheza com o trágico fim de Tio Ivan — Mas, em vez de atribuído a fenômenos ocultistas, seria mais sensato supor que ele tenha sofrido dois duros golpes: a perda de seu titulo de nobreza e a também a noticia do casamento do Barão Kozen com a jovem Juliana Marotti
Além disso, a repentina morte do Barão de Komedhor também pode ter repercutido sobre sua natureza impressionável.
— Se vocês vissem o que vi e conhecessem todas as circunstâncias estranhas que cercaram a morte de Ivan, mudariam de opinião.
— Como assim? Eric ficou totalmente perplexo.
— Deixe-me falar e vou lhes falar que este lugar é malfadado e que naquele castelo de Komedhor se viu e ouviu coisas que os cientistas nem suspeitam, ah!... Isto sim! O padre Timon pode confirmar tudo.
— Oh! Padre, por favor, conte-nos o que sabe sobre aquele castelo Quem o construiu eu o sei, mas e o que aconteceu por lá? Morro de vontade de conhecer aquele castelo misterioso que me aguça a curiosidade com suas torrezinhas pontiagudas como se fosse o castelo da “Bela Adormecida”.
Erica sentou-se perto do padre e passou a insistir que ele lhe contasse o que sabia sobre o estranho castelo.
— Bem, só posso contar o que sei. Infelizmente meu relato só vai reafirmar o motivo da repulsa do almirante por estas paragens
— respondeu o reverendo com um suspiro lamentoso, referindo-se ao velho marinheiro
Ele ficou por instantes pensativos, e depois começou:
— Não conheci quem construiu o castelo, mas o meu antecessor, Pastor Porfírio, me contava a respeito das lendas: que o proprietário de Gorky começou as obras após uma longa expedição ao exterior. Na época, conforme contavam, ele trouxe consigo um italiano que se dizia arquiteto; mas os trabalhadores insistiam em falar que ele era também feiticeiro, pois estava sempre na companhia de um cão negro que tinha um olhar quase humano e a quem todos temiam.
Diziam ainda que o italiano tivesse “olho gordo”, pois quando ele mirava algo, acontecia depois alguma desgraça: as crianças adoeciam, o gado morria e, às vezes, surgiam incêndios.
Então, ficou difícil encontrar trabalhadores para a obra porque as pessoas fugiam assim que o viam de longe. Sua má fama aumentou ainda mais a partir do momento em que o proprietário não benzeu a casa após o término da construção. Mais tarde, correu boato que o italiano havia morrido e fora sepultado no castelo. Depois, surgiram rumores que na ilha aconteciam coisas estranhas: por entre as árvores se viam fogos acendendo-se à noite e um cão uivava desesperadamente. Resumindo: a aldeia ficou em pânico. Até o proprietário ficou meio estranho: emagreceu a olhos vistos e procurou se isolar. Seis meses mais tarde apareceu morto na cama.
O único descendente dele, Vladimir Tuzov se instalou por aqui com a esposa e um garoto de uns treze - catorze anos. No início, ele era muito alegre e sociável; visitava os vizinhos, dava recepções e caçava. Depois, repentinamente, se enclausurou. Correram boatos que ele passava dias e noites lendo livros e documentos do parente. Mas quando sua esposa morreu de ataque do coração, ele se mudou definitivamente para o castelo.
Entretanto, após alguns meses, foi embora para o estrangeiro levando o filho, Nikolai. Desde então, nunca mais os vi. Passaram-se quinze anos sem que aparecesse nenhum dos proprietários de Gorky. A casa senhorial ficou com as portas e as janelas vedadas com tábuas, sob a constante vigilância do velho mordomo Thomas e de sua esposa. Ninguém punha os pés no Castelo. Ao partir, Pavel Pavlovitch, proibiu terminantemente qualquer contato com o castelo. Numa noite fria de tempestade do mês de dezembro, o vento assobiava por entre as tábuas do chão e a neve batia nas janelas.
O frio ultrapassava os seis graus negativos . O Padre Claude morava na velha casa paroquial, que já não existe mais, e tinha acabado de sepultar a sua irmã. A partir disto somente se ouvia a versão dele para história.
Carol Trein se remexia na cadeira, ansiosa por mais noticias, e ao mesmo tempo amedontrando-se cada vez com as histórias que naquela noite apavoravam o Padre Claude, um rígido sacerdote que era uma lenda na cidade pela história que se envolveu com Nicolai Tuzov, tio-avô de Ivan Tuzov.
Padre Timon continua a narração da história do padre:
Sentia o peso da amargura daquela perda e, para desanuviar a tristeza, trabalhava até altas horas da madrugada. Já passava da meia-noite quando ouvi os sininhos de carruagem parando diante da casa.
---“Deus do céu!... Alguém deve ter vindo buscar- me para atender algum doente”, pensei comigo mesmo. Em seguida, bateram na porta de entrada e ouvi no saguão a conversa entre o caseiro e a esposa reclamando por terem sido acordados no meio da noite. Saí, ordenei-lhes que abrissem a porta e vi na minha frente um cocheiro coberto de neve. “Não consigo entender o que aconteceu com ele pelo caminho”, dizia o cocheiro. “Nem sei se está vivo ou morto. O Tempo está tão ruim que não dá para ver nada. “Então, vim para cá, padre, em busca de ajuda.”
Iluminei com o lampião o interior da carruagem e vi deitado nas almofadas um homem jovem, de olhos fechados, completamente pálido, que, se ainda não tinha morrido, estava gravemente doente.
A julgar pelo adornado sobretudo, pelo luxuoso baú e pelos dois sacos de viagem, o rapaz era rico. Mas seria impossível continuar a viagem por mais duas léguas naquela tempestade.
Ordenei, então, que o levassem para o quarto da minha falecida irmã, que eu não usava por me trazer tristes recordações.
O desconhecido foi levado para lá e prestei-lhe ajuda. Ele abriu os olhos, mas estava tão fraco que mal conseguia falar. A pedido dele, retirei do saco de viagem um frasco com gotas, que ele tomou, e adormeceu. Seu rosto, apesar da aparência desgastada e doentia, parecia-me familiar. Entretanto, eu não conseguia recordar onde e quando o tinha visto. No dia seguinte, o doente se recuperou o suficiente para começar a se comunicar.
Para minha grande surpresa reconheci que o meu visitante era Nikolai Pavlovitch Tuzov, proprietário de Gorky, cujo pai tinha falecido há quatro anos. Ele pretendia partir imediatamente para a sua propriedade, mas o dissuadi da idéia de se instalar na casa desabitada por tantos anos e me propus ir até lá pessoalmente para mandar que acendessem a calefação, arrumassem os quartos e para auxiliar o velho mordomo. Decidi colocar na cozinha a irmã de minha funcionária, Marta, pois a esposa de Thomas estava muito adoentada.
Nikolai Pavlovitch agradeceu, aceitou as minhas sugestões e eu parti. O velho mordomo ficou entusiasmado em rever o jovem senhor que um dia havia carregado nos braços e apressou-se em cumprir o que eu tinha proposto. Além de Marta, contratamos mais um casal de trabalhadores e começamos a pôr a casa em ordem.
Os fornos de calefação foram postos para funcionar, a poeira foi retirada, descobrimos as capas dos móveis e dos quadros, recolocamos os tapetes; em suma, após algumas horas uma parte da casa estava totalmente arrumada. Escolhemos para Nikolai Pavlovitch o quarto de sua falecida mãe, que davam para o jardim. Thomas contava que naquele lugar tudo permaneceu como era quando a falecida senhora estava viva. Após os funerais, Pavel Pavlovitch trancara pessoalmente os quartos e, desde então, ninguém colocou os pés ali. Depois, na mesma noite, ele se mudou para Gorki.
Quando voltei com a notícia de que estava tudo pronto, Nikolai Pavlovitch agradeceu calorosamente e pediu que o conduzisse imediatamente até lá. A visão da casa iluminada o emocionou profundamente e pareceu alegrar o paciente. Mas ele estava tão fraco que eu e Thomas tínhamos de segurá-lo pelos braços. Quando entramos no dormitório, Nikolai Pavlovitch estancou fixando os olhos na imagem de Nossa Senhora pendurada no canto do quarto, diante da qual Marta acendera uma lamparina. Pensamos que ele desejava persignar-se, mas seu rosto ficou repentinamente sombrio, a boca retorcida e nos olhos acendeu- se um horror insano. Ele, então, bradou com voz irreconhecível:
“Fora!... Fora!...”
E, espumando pela boca, desabou inconsciente nos nossos braços.
Naquele instante, a moldura maciça do ícone se soltou da parede
E caiu, e a lamparina se apagou num crepitar. Fomos tomados por um tremor de horror. Nikolai Pavlovitch foi colocado na cama enquanto o ícone era levado para um quarto distante. Quando retornei para junto do enfermo ele já havia recuperado a consciência. Erguendo o corpo das almofadas olhou com olhar insano para o canto vazio, onde então só havia uma teia de aranha e, me chamando para perto de si, sussurrou de forma mal audível:
-“Mande retirá-los imediatamente... todos... para os aposentos de visitantes, ou melhor, leve-os todos para a igreja. Eu os dou de presente para você.” Dominando com dificuldade o horror que tais palavras produziram em mim, não consegui deixar de observar:
“Os pecados que traz em sua consciência devem ser pesado demais para a visão de nossa Defensora Celestial provocar tanto horror no senhor.”
Jamais esquecerei a expressão de sofrimento e desespero que se refletiu no rosto dele ao balbuciar:
---“Não consigo. Sufoco ao ver a imagem Dela.”
Senti profunda pena daquele homem solitário, enfermo e, aparentemente, infeliz. Prometi cumprir seu desejo e retirar todos os ícones. Na despedida, ele agarrou minha mão, apertou-a e balbuciou com voz entrecortada:
---“Padre Claude, se eu chamá-lo para o meu leito de morte, o senhor virá me apoiar nessa hora difícil e me salvar?
Apesar de vacilar por dentro, prometi cumprir seu pedido e saí para recolher e levar comigo todos os ícones da casa.
Os criados estavam reunidos no saguão, aguardando a minha saída para me comunicar que não desejavam permanecer naquela casa e servir aquele “maldito”. Consegui dissuadi-los dizendo que deviam se envergonhar, pois era desumano abandonar um enfermo que talvez estivesse sofrendo das faculdades mentais. Por fim, eles resolveram ficar. Voltei, então, para junto de Nikolai Pavlovitch e lhe expliquei a posição da criadagem.
Ele ficou estupefato, mas, sem contestar, me entregou imediatamente uma grande soma em dinheiro, que distribuí entre o pessoal, e fui para casa. Por três semanas não tive notícias de Nikolai Pavlovitch. Certa vez, ao voltar da igreja para casa, à tarde, vi junto ao portão uma carruagem estacionada. O cocheiro me informou que tinha vindo de Gorky trazendo uma carta de Nikolai Pavlovitch, na qual ele me lembrava à promessa que havia feito e implorava que fosse vê-lo, pois sentia a proximidade da morte e desejava conversar. Demorei a me decidir e, confesso que só concordei em visitá-lo na esperança de o infeliz, no último minuto, desejar converter-se. Mas não queria ir sozinho; então, levei comigo o diácono. Portanto, fomos até lá, mas no caminho notei com insatisfação e até com preocupação que o cocheiro seguia direto para a ilha através do lago congelado.
No saguão fomos recebidos por Thomas e Marta. Eles estavam desolados e nos disseram, horrorizados, que há duas semanas o amo se mudara para a maldita casa, onde reinavam forças do mal. Durante a noite aconteciam ruídos estranhos, as portas se escancaravam rangendo, as lamparinas se apagavam repentinamente, sem motivo aparente, e junto ao quarto do amo se ouvia barulho de louça, gargalhadas e cantar insano. Thomas afirmava, além disso, que um homem escuro tentara estrangulá-lo quando, certa vez, durante a balbúrdia, ele começou a recitar o “Pai-Nosso”.
---“Todo dia ele nos dá dinheiro e pede que não o abandonemos. Mas não agüentamos mais. Estamos muito aterrorizados. Queira Deus que ele morra logo!”, contou-me Thomas, assustado e pálido.
Perguntei, então, se o paciente estava tão mal assim. Ao que o mordomo respondeu:
-“Ele consegue levantar e andar, mas a morte está estampada em seu rosto.”
Pedi ao diácono para me aguardar e entrei sozinho no dormitório, onde Nikolai Pavlovitch estava sentado junto à mesa, no centro do quarto. Seu rosto pálido, sem vida, e os olhos fundos me convenceram de que estava diante de um moribundo. A escuridão provavelmente o assustava e, por isso, sobre a mesa estavam acesos dois candelabros de cinco velas; do grande balde com gelo aparecia uma garrafa de champanhe e tinha à mão uma taça meio vazia.
-“Mas o que significa isso? O senhor solicita ajuda da Igreja, me faz trazer a extrema-unção para salvá-lo na hora da morte e o encontro aqui bebendo champanhe!”“, disse-lhe com desaprovação.
-“Faço isso, padre, para obter um pouco de força e coragem; para matar a tristeza que me tortura”, respondeu com voz baixa, olhando em volta, assustado.
Depois, repentinamente, agarrou minhas mãos e apertou- as, implorando:
“Padre Claude, não me deixe! Sinto que o fim está próximo e não tenho ninguém para me proteger do terrível amo que escolhi.”
Então, baixou a cabeça e continuou:
-“Mas o senhor é servo daquele cujo nome nem ouso pronunciar.
O destino me conduziu à sua casa assim que cheguei aqui. Talvez seja a minha âncora de salvação, o meu único defensor, e consiga arrancar a minha alma.”
Nikolai Pavlovitch ficou emocionado e se calou, respirando com dificuldade, mas depois prosseguiu:
-“Mas, padre, teria o senhor força e coragem suficiente para suportar a terrível luta contra o inferno?Meus crimes foram terríveis e as forças do mal não vão querer me deixar escapar.”
Senti-me muito mal. Mas como poderia eu, um servo de Deus, recusar ajuda àquele infeliz e arrependido pecador? Por isso, respondi que faria tudo que dependesse de mim, usando de todas as forças que a Igreja e a inabalável fé me concedia para salvá-lo da perdição e, então, iniciei a confissão. Nikolai Pavlovitch ajoelhou-se e, num tom baixo mas claro, começou a se confessar. Deus livre a qualquer um ouvir tal entrelaçamento de maldades. Um frio tremor assenhoreava de meu corpo.
Entretanto, percebi que a cada vez que me persignava involuntariamente, as paredes estalavam ao receberem lufadas de vento gelado e fétido, e Nikolai Pavlovitch estremecia como se fosse açoitado. A terrível confissão já chegava ao final e eu peguei a cruz exatamente na hora em que o relógio batia meia-noite.
Nem consegui terminar a prece de redenção dos pecados quando soou um agudíssimo assobio; uma esfera negra voou da lareira e passou a girar entre mim e Nikolai Pavlovitch, estalando e arremessando fachos de faíscas. Ouviu-se uma forte explosão, a esfera estourou e deixou escapar uma fumaça negra e espiralada.
Mudo de terror, vi surgir das espirais de fumaça um homem negro de cabelo arrepiado e olhos tão diabolicamente maus que até hoje sua lembrança me faz estremecer. Fiquei estarrecido, enquanto o diácono, que entrara no quarto, pareceu enlouquecer; seus cabelos eriçaram-se e ele ergueu involuntariamente o Evangelho, usando-o como escudo.
O ser diabólico levantou ameaçadoramente a mão, seus longos dedos em forma de garras, e ouvi nitidamente:
-“Se você não estivesse protegido por aquilo que traz pendurado o peito, teria chegado a sua hora. “Quanto a você, desprezível traidor”, disse dirigindo-se a Nikolai Pavlovitch, “pagará por sua traição!”
Ele pulou sobre Tuzov, que desabou no chão. Ainda vi como o diácono desmaiou; depois corri em pânico para fora do quarto e, chegando ao saguão, onde Thomas e Marta estavam apavorados escondidos num canto, acabei também perdendo os sentidos.”
O padre se calou, tomado por tristes recordações, parecendo ter esquecido tudo ao seu redor. Impressionados com a descrição, os ouvintes também ficaram calados. Mas Carol Trein, que acompanhava o relato com curiosidade , não suportou o prolongado e torturante silêncio e tocou na mão do padre.
— Continue padre Timon! O que aconteceu depois?
— Depois? — ele passou a mão pelo rosto.
— O que aconteceu depois também é bastante misterioso e sombrio.
Assim, quando recuperei a consciência, já amanhecia. Meu desmaio tinha durado algumas horas e me sentia totalmente quebrado. Entretanto, ao saber que o diácono não aparecia, respirei fundo e, após uma fervorosa oração, entrei no terrível quarto. O diácono, então, abriu os olhos, mas seus cabelos estavam grisalhos. Ele saiu do quarto apoiando- se em mim. Nikolai Pavlovitch estava morto e seu corpo, desfigurado, jogado ao chão.
O rosto inchado e enegrecido parecia terrível e os olhos estavam esbugalhados como se ele tivesse sido estrangulado. Na volta para casa, outra desgraça nos aguardava: as casas paroquiais haviam-se incendiado completamente. Toda a paróquia ficou alvoroçada e, quando foi levantada a questão do sepultamento de Tuzov no nosso cemitério, os camponeses foram contra, não desejando ter um “maldito” naquele campo santo.
Dessa forma, Nikolai Pavlovitch foi sepultado em lugar afastado de Gorki, perto da floresta de Molay, onde ninguém mais quis permanecer. Algum tempo depois, chegou o novo proprietário, Piotre Petrovitch Tuzov, pai de Ivan Tuzov, um bom senhor que mandou reconstruir as casas paroquiais por conta própria e deu dinheiro para outras reformas, mas tinha uma formação totalmente diferente. Cético inveterado, não deu qualquer crédito a tudo o que havia acontecido por aqui, e proibiu que falassem sobre o assunto.
Certa vez, foi para um lugar afastado e, ao ver que no túmulo de Nikolai Pavlovitch não havia nada além do montículo de terra sem cruz, erigiu lá um monumento: uma lápide de mármore com uma grande cruz. Mas, na véspera do benzimento do monumento, desencadeou- se uma grande tempestade. Não consigo me lembrar de ter visto antes relâmpagos tão brilhantes e trovões como aqueles, que causaram tantos estragos.
A tempestade derrubou e quebrou a cruz de mármore; um relâmpago caiu sobre a lápide e derreteu as letras metálicas, deixando o mármore tão desfigurado que as linhas pareceram formar dois triângulos. Mais tarde, fiquei sabendo aquele era um sinal cabalístico. Esse acontecimento abalou sobremaneira os habitantes dos arredores. Não sei o que pensou Piotre Petrovitch, mas não reconstruiu o monumento e mandou que retirassem os restos da cruz.
Novamente todos ficaram em silêncio. O relato do padre pareceu Impressionar a todos. O almirante, pensativo e sombrio, ficou olhando o lago sobre o qual se elevava uma névoa esbranquiçada que adensava e se agitava ao vento.
— Vamos para casa, meus amigos, está ficando frio! — disse ele repentinamente. Meu reumatismo não suporta a umidade e não gosto de ficar ao relento quando aparece a neblina.
Então, passaram a falar de outros assuntos. Entretanto, o relato do padre havia impressionado a todos e a família dispersou- se mais tarde que o habitual.
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